domingo, 3 de novembro de 2013

Procure saber - e entender


"Você morre como um herói, ou vive o suficiente
para se ver transformado em vilão."

     Seriam risíveis - se não dissessem respeito a tema tão caro a uma democracia - as tentativas dos integrantes do grupo Procure Saber (notadamente Gil, Caetano, Erasmo, Roberto Carlos e Paula Lavigne) de justificar o injustificável, de explicar a postura retrógrada inicialmente adotada (e agora envergonhadamente rejeitada, ainda que não de forma explícita).
     Seria cômico ver os malabarismos argumentativos, as piruetas retóricas e os bamboleios dialéticos dos artistas da Procure Saber para justificar sua indefensável defesa dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que tornam obrigatória a autorização do biografado e/ou de sua família para a publicação de qualquer biografia no Brasil, se não fossem tão relevantes os aspectos da liberdade de expressão ameaçados por esses dois bisonhos dispositivos legais.
     Não que se esperasse postura diferente de Roberto Carlos, conhecidíssimo control freak, que não suporta que falem - bem ou mal - de sua pessoa, embora seja uma pessoa muito pública. De Erasmo, não sei se se espera algo. Paula Lavigne é um tanque de guerra, dela tudo se espera. E como ninguém entende o que Djavan diz em suas letras, só o fato de entendermos de que lado ele está na briga já pode ser considerado um avanço.
     Mas a posição de Caetano, Gil e Chico - notórios defensores da liberdade de expressão, até por terem sofrido as agruras da censura prévia durante a ditadura - surpreendeu a todos. Ninguém, em sã consciência, poderia imaginar que nossos libertários tropicalistas abandonariam o "é proibido proibir", ou que Chico daria ao seu "Cálice" um novo e tenebroso sentido.
     Cazuza viu seus heróis morrerem de overdose. Não demos a mesma sorte. Como diz a personagem de Aaron Eckhart em The Dark Knight, "you either die like a hero, or you live long enough to see yourself become a vilain". Pois é, Chico, Gil e Caetano (felizmente) ainda não morreram, e continuam produzindo música de qualidade (embora o auge de todos já esteja no passado), mas mancharam - a meu ver de forma indelével - suas histórias de vida com a defesa inaceitável da censura prévia para a publicação de biografias.
     Eles negam, é claro. As últimas colunas semanais de Caetano no Globo são um primor de, hum, "caetaneamentos". Caetano anda caetaneando o que há de bom mais do que nunca. Parece querer competir com Djavan no obscurantismo.
     No artigo Cordial, Caê escreve: "Censor, eu? Nem morta!". Li e reli o artigo e até hoje não entendi o que ele quis dizer. Caê começa o artigo afirmando que sua tendência é contra a exigência de autorização prévia, para depois descambar num quiproquó retórico em que conclui que "sou sim a favor de podermos ter biografias não autorizadas de Sarney ou Roberto Marinho. Mas as delicadezas do sofrimento de Gloria Perez e o perigo da proliferação de escândalos são tópicos sobre os quais o leitor deve refletir."
    Entenderam? Então me expliquem. Biografia de político e empresário pode, mas de artista não?
     Chico Buarque fez um papelão ainda maior. No artigo Penso eu, disse que o autor da biografia proibida de RC, Paulo César de Araújo, nunca o tinha entrevistado. Paulo César o desmentiu publicamente, publicando inclusive foto e vídeo da entrevista que Chico negou ter dado. Chico, o mais radical do grupo depois de RC, pediu desculpas publicamente. Vexame total.
    A imprensa em geral, com a superficialidade que lhe é inerente, caiu de pau nos artistas, defendendo com unhas e dentes a liberdade de expressão e fingindo que o direito à privacidade, também constitucionalmente garantido, não existe. Paulo César de Araújo tem posado em jornais, revistas e programas de TV como mártir. Nada é tão simples, nem para um lado, nem para o outro.
     Mas, a par do debate rasteiro que temos acompanhado, a defesa da necessidade de autorização prévia de biografados e/ou seus parentes me parece insustentável. 
     Biografia é um gênero literário, dos mais pobres no Brasil, não só por causa da já natural indigência do mercado editorial brasileiro, como também por conta dos entraves que a legislação atual impõe aos biógrafos. Biografia autorizada é elogio. Não é literatura, é marketing. Simples assim, o resto é conversa fiada. Eventuais mentiras e abusos devem ser reprimidos a posteriori. Não é uma ferramenta perfeita, mas é a única viável.
     O grupo Procure Saber, diante da inevitável repercussão negativa de sua postura, publicou no Youtube um constrangedor vídeo no qual Gil, RC e um Erasmo aparentemente meio bêbado tentam sustentar o insustentável. O Tremendão bateu todos os recordes de hipocrisia ao afirmar que "se nos sentirmos ultrajados, temos o dever de buscar nossos direitos, sem censura prévia, sem a necessidade de que se autorize por escrito quem quer falar de quem quer que seja". RC, que processou civil e criminalmente o autor de sua biografia, diz no vídeo que prega a liberdade e o direito às ideias. Discurso que não condiz com as atitudes do grupo. E, só para lembrar, RC agora tenta proibir a publicação de um livro sobre a jovem guarda porque - é claro! - fala de sua vida e obra. Mas é possível escrever um livro sobre a jovem guarda sem mencionar RC? É possível escrever sobre a tropicália sem mencionar Caetano e Gil? Então, um trabalho sobre a história da MPB fica condicionado à autorização de seus protagonistas?
     As reiteradas pancadas que a mídia vem dando no grupo levaram a um racha, e hoje, no artigo Código, no Globo, Caê resolveu descer a lenha em RC. Natural. Quando se sustenta o insustentável, as bases argumentativas tendem a ruir.
     Conto os dias para que o STF julgue inconstitucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil - o que me parece inevitável. E, ao contrário do que se tem afirmado, acho pouco provável que essa mancha na biografia dos (ex?) libertários membros do Procure Saber desapareça com o tempo. Nossos ídolos ainda são os mesmos, e as aparências não enganam não?
     Procurei saber, procurei entender. Mas a postura do Procure Saber, apesar do inegável direito à privacidade que todos, até as figuras públicas, têm, é incompreensível e inaceitável. É censura prévia sim, doure-se a pílula o quanto quiser. E é a sentença de morte de todo um gênero literário.
     Para além do debate raso, não é preciso muito esforço para que se conclua que o Procure Saber, ao defender a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil, dá um tiro no próprio pé. O que, aliás, ao que tudo indica, seus integrantes já notaram.
     É bom lembrar que, embora o Código Civil tenha entrado em vigor em 2002 (substituindo o de 1916), seu anteprojeto começou a ser redigido nos anos 70. É claro o ranço autoritário dos artigos 20 e 21, cuja constitucionalidade se debate no STF. A maioria dos ministros já sinalizou que, provavelmente, esses artigos serão declarados inconstitucionais. É esperar para ver. Até lá, seguimos todos (esperamos que a turma do Procure Saber também) refletindo a respeito. Enquanto isso, nossos artistas - que, recentemente, ganharam o apoio de ninguém menos do que Jair Bolsonaro (o que já deveria fazer com que desconfiassem de seus argumentos) - continuam se enrolando em suas próprias contradições como gato em novelo de lã.
     Você não sente nem vê
     Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
     Que uma nova mudança em breve vai acontecer
     E o que há algum tempo era novo, jovem
    Hoje é antigo, e precisamos todos, rejuvenescer.
     Aguardemos os próximos capítulos.