terça-feira, 23 de julho de 2013

Dubai é aqui


Marte Debora Dalelv. Condenada em Dubai
pelo crime de ter sido estuprada.

     Dubai entrou na moda nos últimos anos como destino de executivos (e engravatados em geral) sedentos de lucros e Meca (perdoem o trocadilho) da opulência dos mercados financeiros, polo de investimentos etc. A cidade de Dubai (que tem o mesmo nome do Emirado), construída no meio do nada e sem qualquer beleza natural, atrai também turistas pela sua modernidade, tecnologia de ponta e urbanismo progressista.
     Mas Dubai ainda é um Emirado Árabe, e como tal adota as leis muçulmanas e os valores do Corão. O mundo tende a ignorar esse contraste e a olhar, fascinado, para o lado moderno e próspero do lugar.
     Até o momento em que uma estrangeira é estuprada.
     A essa altura todo mundo já conhece a história: em março, a norueguesa Marte Deborah Dalelv, de 24 anos, que estava em viagem de negócios pelo país, procurou a polícia de Dubai e denunciou um estupro. Segundo a denúncia, ela teria ido a uma festa com um colega de trabalho, ambos beberam e, quando voltaram ao hotel, o colega (seu chefe, por sinal) a teria violentado.
     A resposta dada a Marte pela polícia de Dubai - diga-se de passagem, em plena consonância com as leis daquele país (ah, as loucuras do fanatismo religioso!) - foi confiscar seu passaporte e trancafiá-la numa cela por quatro dias sem permissão sequer para usar o telefone. No final da semana passada, Marte foi condenada a 16 meses de reclusão por ingerir bebida alcoólica, fazer sexo fora do casamento e atentar contra a decência (a UOL divulgou a notícia no dia 19).
     Que ninguém acuse Dubai de misoginia. Afinal, o chefe de Marte também foi condenado a 13 meses de reclusão, por consumo de álcool e relações sexuais consentidas...
     A repercussão mundial foi tão negativa, e tão intensa, que o governo de Dubai decidiu perdoar Marte - e, é claro, perdoar também seu agressor.
     Todo esse horror parece muito distante do Brasil. Afinal, o fato ocorreu em um país árabe, imerso na cultura muçulmana (que é assumidamente machista e desigual no trato entre homens e mulheres) e que, no que toca aos direitos humanos, ainda não saiu do Paleolítico.
     Parece. Mas as aparências enganam.
     Quando a notícia da libertação de Marte foi divulgada da internet, os comentários dos internautas - sempre um bom termômetro de parcela da opinião popular - deixaram bem claro que temos muito mais  de Dubai - em seu aspecto medieval, não em sua faceta moderna - do que imaginamos.
     Os links estão no texto, o leitor pode dar uma conferida. Destaco três, dentre muitos, muitíssimos, no mesmo sentido:

"Mas um pouco de decência também é bom, né?"

"caiu na gandaia tomou todas disse foi estuprada e foi presa que loucura"

"Se vai transar, leve um gravador primeiro e pergunte para a parceira, posso transar com você? Previna-se porque depois ela pode dizer que foi estuprada e você vai preso. Em Dubai, transou e não tem compromisso assinado dançou! Eta sociedade esquisita! Não vá a Dubai principalmente se sua companheira não for casada."

     Há comentários ainda piores, mas a linha-mestra, que se repete ad nauseam (literalmente) é o velho argumento: a vítima provocou. Afinal, ela estava em uma festa, bebeu com o colega, nada mais natural do que ela querer fazer sexo com ele, mesmo que, digamos, não demonstre isso claramente. Simples, não? Não.
     O que surpreende nos comentários às notícias é a convicção quase unânime de que o sexo foi consensual, e que Marte, sabe-se lá por qual razão, decidiu acusar o chefe de estupro. Convicção, aliás, também do Judiciário de Dubai, já que o chefe de Marte foi condenado por ter relações sexuais consentidas.
     Outro argumento frequente nos comentários é o de que Marte estava em outro país, outra cultura, logo, deveria respeitar os costumes locais. Nada mais é do que uma variante do "foi ela que provocou". E por trás da aparente suavidade do "uma coisa não justifica a outra, maaaassss...." se revela cristalina aquela certeza íntima de que, ao contrário do que a boca diz, a cabeça acredita que a conduta de Marte justifica, sim, o que ela passou depois.
     Que fique claro: eu não estava lá, não posso afirmar com certeza que Marte foi estuprada. Por outro lado, os internautas que se apressaram em condená-la (e que têm uma certeza quase religiosa - novamente, perdoem o trocadilho - de que ela consentiu) também não estavam lá, e sabem tanto - ou tão pouco - sobre o que de fato aconteceu quanto eu. Escolher entre acreditar na versão da suposta vítima ou no suposto agressor, se as duas versões forem igualmente prováveis (não me parece o caso, por sinal), não esclarece o ocorrido, mas informa muito sobre quem faz a escolha.
     Bom seria se Dubai (no que tem de pior) fosse um país distante. Mas no Brasil do século XXI, Dubai não está distante. Nem mesmo está perto. Dubai é aqui.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Saudades da ditadura?




    O plano era dar uns dias de folga ao blog, estou de férias etc. Mas algumas coisas simplesmente entalam na garganta da gente, e expeli-las se torna questão de saúde, se não pública, ao menos privada.
     E eis que, em menos de uma semana, surgem nas redes sociais pelo menos três - sim, três! - textos remoendo "saudades da ditadura". Sintomaticamente, dos que me chegaram às mãos, um de um sujeito dos seus 50 e poucos, outro de uma pessoa entre 30 e 35, e o último - horror! - de um rapaz de menos de 20. Este, acrescido de um vídeo do ex-presidente Figueiredo (aquele que, na presidência, afirmou que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo) e do texto "saudades... Éramos felizes e não sabíamos".
     E meu plano de dar férias ao blog foi para o espaço. Porque, se três gerações distintas sentem saudade da ditadura, algo está muito mais errado do que imaginávamos.
      Chamemos esses três grupos, representados por esses indivíduos, respectivamente de saudosistas, idealistas e neorreaças. A nomenclatura é imperfeita, bem sei, mas servirá para fins didáticos.
     O saudosista, na casa dos 50 e tantos, lembra com carinho do tempo em que não havia tanta criminalidade nem corrupção, a economia era estável (rescaldo do "milagre econômico" que já se despedia) e as domésticas sabiam seu lugar - aquele quartinho dos fundos que fazia as vezes de neosenzala. Aeroporto era coisa de gente chique, assim como automóvel. Eletrodoméstico era termômetro de caridade - gente com "consciência social" doava o liquidificador para a empregada quando comprava um novo (os mais radicais, quase comunistas, doavam videocassetes velhos).
     Os idealistas nasceram entre o fim da ditadura e o início da redemocratização; amargaram as trapalhadas econômicas dos meados dos anos 80 e os primeiros tropeços democráticos dos anos 90. Gozaram de alguns privilégios dos quais se viram, na última década, subtraídos - ou, a seu ver, surrupiados.
     Os neorreaças, muitos filhos de saudosistas, nada sabem da ditadura, além do pouco que ouviram nas aulas de história na escola (às quais não prestaram atenção). Sem jamais terem aberto um jornal, formaram o que chamam de "convicção política" a partir do que ouviram do papai e/ou da mamãe - ávidos leitores e assinantes da VEJA. Sentem falta de um período que não conheceram, mas que seus pais descrevem como aquele tempo em que "tudo era melhor".
     Esses três grupos têm, entre si, inúmeras distinções e similaridades. Destacam-se, no entanto, duas características principais:
     1) Uma inacreditavelmente estúpida confusão entre causa e efeito;
     2) a defesa intransigente da tese de que "não havia corrupção" e "nenhum militar enriqueceu na presidência".
     A confusão entre causa e efeito pode ser constatada de várias maneiras. As mais comuns consistem nas afirmações de que a escola pública "tinha qualidade" durante a ditadura e de que os índices de criminalidade eram menores.
     Mas foi justamente a partir dos anos 70 que as escolas públicas começaram a perder qualidade. Isso não ocorreu apenas com o achatamento dos salários dos professores (fenômeno que se intensificou a partir dos anos 80, razão pela qual muita gente, de forma equivocada, situa nessa década o início do declínio da educação no Brasil). O primeiro golpe dos militares na educação ocorreu com o deliberado projeto de eliminação do senso crítico e da consciência cidadã dos alunos, que foram substituídos, numa verdadeira lavagem cerebral, por um patriotismo de caráter extremista que substituía qualquer análise crítica da realidade brasileira (se alguém duvida, basta ir a um sebo, comprar um livro escolar de história dos anos 70 e ler o que se escrevia sobre Jango e a "revolução" que "salvou o Brasil do comunismo"). E só para lembrar, foi Samuel Johnson, e não Nelson Rodrigues, quem disse que "o patriotismo é o último refúgio do canalha". Nelson só emulou, mas ambos estavam certos.
     Assim como a destruição do sistema educacional público, a catástrofe econômica dos anos 80 e o aumento da criminalidade - alguém ainda duvida que esses fenômenos estão relacionados? - foram em parte o preço do "milagre econômico" dos militares. Ou alguém acha que obras faraônicas e a proibição de entrada de produtos estrangeiros no Brasil (para "estimular a indústria interna") não cobrariam seu preço? Milagres não existem, muito menos em economia. E se, por um lado, o cenário externo contribuiu para a crise, não se pode negar que os militares contribuíram com sua carga de ignorância e ineficiência (é bem conhecida a preferência de Costa e Silva pelas palavras cruzadas a qualquer livro sobre o país que ele presidia) para o preço que o "milagre" inevitavelmente cobraria. É incontestável - até os mais conservadores admitem - que o "milagre econômico" aprofundou sobremaneira a desigualdade. Alguma relação entre desigualdade e criminalidade?
     Em suma, achar que a situação do país piorou por causa da saída dos militares (e não apesar dela) revela uma imensa ignorância sobre a história brasileira e uma falta de informação abismal. É até compreensível - embora não aceitável - que saudosistas e idealistas pensem assim, com base em suas vivências empíricas. Mas os neorreaças não têm nem mesmo essa desculpa. 
     Quanto à tese de que não havia corrupção na ditadura e que os militares não enriqueceram no poder, é de uma ingenuidade atroz. Deveria ser óbvia a qualquer vertebrado a diferença entre inexistência e falta de divulgação. Evidentemente, o mundo atual é muito mais transparente do que o dos anos 60-80. Além disso, achar que os militares estavam numa redoma moral, imunes ao que eles mesmos consideravam um traço cultural dos brasileiros, é de uma inocência sem par. Mais denúncias não significam necessariamente mais corrupção. Podem muito bem significar mais investigações e mais transparência. Vale lembrar que a imprensa vivia sob censura na época, o que, é claro, não acontece hoje. E corrupção não se limita a dinheiro. Corrupção, em sentido amplo, implica violar a lei, que se aplica a todos, inclusive aos governos. E nesse aspecto, nenhum governo foi mais corrupto que o militar (de resto, vale ler o livro "Como eles agiam", do historiador Carlos Fico, para se ter uma ideia do grau de corrupção - inclusive em sentido estrito - durante a ditadura).
     Haveria muito mais a ser dito, dentre argumentos aparentemente mais ponderados a verdadeiros delírios (inacreditavelmente, ainda há quem acredite no risco de um "golpe comunista" no Brasil). Mas a síntese dessa história toda é: você não precisa concordar em nada com o governo atual; você pode querer um governo liberal, conservador, repressor etc. Mas você só pode lutar por um governo diferente do atual numa democracia. Ditaduras não dão espaço a visões de mundo diferentes.
     Então, seja você um saudosista, um idealista ou um neorreaça, se você sente saudade da ditadura, lembre-se que você só pode lutar pela volta dela porque ela não existe mais.