terça-feira, 18 de junho de 2013

Geração coca-zero, memes e um novo Brasil


A juventude toma o Congresso Nacional: a mais bela cena de 2013

    Quem poderia imaginar, ao acordar ontem, que testemunharia um dos mais belos momentos da história recente do país?
     Ontem, mais de 250 mil pessoas tomaram as ruas do país para protestar. Só na cidade de São Paulo, foram 65 mil. O mote inicial dos protestos - o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus - já ficou para trás. Foi a gota d'água. Da PEC 37 à preferência dos governos por investir em estádios ao invés de educação, passando pela corrupção na política, uma gama de temas levou os protestantes, a maioria jovens, às ruas. Numa das cenas mais lindas que jamais testemunhei, a juventude tomou o Congresso Nacional, em Brasília, hoje símbolo, no imaginário popular, do que a política representa de pior (alguém lembra a cena final de Tropa de Elite 2?).
     É claro que a história não se escreve de um minuto para outro. Mas as manifestações anteriores - principalmente a terceira e a quarta - foram, em retrospecto, as premissas para o chamado Quinto Grande Ato contra o aumento das passagens, esse que foi, sem dúvida nenhuma, o ponto de virada do movimento.
     Apenas lembrando: o terceiro protesto foi marcado por atos de vandalismo e depredação, praticados por sociopatas que se aproveitaram do anonimato que esse tipo de evento proporciona para extravasar suas neuroses (como escrevi no texto anterior, O sono da razão). Qualquer pessoa que conhece minimamente a realidade de São Paulo já podia prever o que aconteceria a seguir: assim como, em 2006, os ataques do PCC provocaram uma reação desproporcional e absolutamente brutal da polícia, era previsível que os abusos praticados por uns poucos dementes na terceira passeata levassem a uma reação extremada da polícia no quarto ato - principalmente porque os principais jornais de São Paulo, em seus editoriais, fomentaram a violência e o maior rigor da polícia contra os "vândalos".
     Claro que a mesma imprensa que atiçou o governo e a polícia contra os manifestantes (tornou-se um clássico instantâneo no youtube a cena em que o apresentador Luís Datena rebola na gramática para que o público de uma pesquisa desaprove o movimento, enquanto o público continua a aprová-lo) passou a reclamar quando seus próprios repórteres começaram a ser agredidos. Pau que bate em Chico também bate em Francisco, principalmente quando não se sabe quem é um e outro. Depois que alguns repórteres apanharam da polícia, o discurso da grande mídia mudou. Os "vândalos" se tornaram "manifestantes", e a "defesa rigorosa da ordem" se transformou em "brutalidade policial".
     Com os ventos midiáticos mudando de direção, engajar-se ficou cool. Arnaldo Jabor, que no dia anterior havia comparado o "ódio à cidade" dos manifestantes ("revoltosos de classe média que não valem 20 centavos") ao PCC, voltou atrás, num patético arremedo de mea culpa que não convenceu ninguém. Mais constrangedor foi ver um bando de globais que nunca se preocuparam um minuto com a violência policial cotidiana contra negros e pobres nas periferias pintando o olho de roxo e fazendo carinha de "#chatiado" porque UMA jornalista da Folha foi vítima de abuso policial - um oportunismo político de dar orgulho a qualquer Stalin wannabe. Ser politizado nunca foi tão legal.
     Também era previsível que no Quinto Ato a polícia fosse moderada, dada a tremenda repercussão negativa dos abusos policiais cometidos na quarta passeata. Fazendo cosplay de oráculo, cheguei a tranquilizar algumas pessoas que tinham receio de ir ao protesto: "acho que a coisa vai ser mais tranquila justamente por causa da repercussão negativa da última", escrevi a uma amiga preocupada. Dito e feito.
     Mas a adesão de quase um quarto de milhão de pessoas Brasil afora, isso ninguém poderia prever.
     A falta de um foco específico nas passeatas, antes de ser um problema, talvez seja sua maior qualidade. Porque mostra que a juventude não suporta mais inúmeros problemas brasileiros, e não um problema específico. O Quinto Ato foi a explosão de uma panela de pressão, a gota d'água que faltava para o caldo entornar. E, ao contrário do ridículo movimento Cansei de 2007 (uma manifestação "política" capitaneada por Hebe Camargo, precisa dizer algo mais?), ontem o povo brasileiro mostrou à classe política que realmente está cansado - da violência, da corrupção, da impunidade, da precariedade da educação etc.
     Impossível não lembrar o grande momento da minha geração, os protestos dos caras-pintadas contra o presidente Collor em 1992. A resposta ao desesperado apelo do então presidente na televisão ("não me deixem só") foi um abandono total e uma exigência maciça, por parte da juventude, de que ele deixasse o cargo.
     Éramos a geração coca-cola, "os filhos da revolução, burgueses sem religião". Éramos o futuro da nação, há 20 anos. Hoje, somos o presente e essa nova geração - geração coca-zero? - é o futuro. Talvez, daqui a 20 anos, o dia 17 de junho de 2013 seja lembrado pelos livros de história como o ponto da virada, o momento em que o "chega!" deixou de ser discurso e passou a ser ato.
     É claro que tudo depende de como serão as próximas manifestações. Mas arrisco - olha o cosplay de oráculo outra vez! - que, se os atos seguirem pacíficos, a adesão será cada vez maior. O apoio da população está garantido. As reivindicações são justas. Resta ver como a classe política vai reagir diante de um fenômeno tão raro, inusitado e - para os maus políticos, para quem ainda quer um Brasil "mais do mesmo", desigual, ineficiente, injusto - preocupante.
     Memes não são só aquelas carinhas bobas que povoam o Facebook. O termo meme foi cunhado em 1976 pelo biólogo Richard Dawkins, no livro O gene egoísta. Significa uma unidade de informação - geralmente uma ideia - capaz de se autopropagar (o livro usa a curiosa expressão "vírus memético"). Pense numa ideia que "contamina" as pessoas que entram em contato com ela. Pense num povo subitamente "contaminado" pela ideia de que pode mudar a realidade de seu país - ideia que se alastra rapidamente, como um vírus poderoso. Um apocalipse zumbi às avessas.
     O Primeiro Grande Ato, em 06 de junho, contou com 5 mil pessoas. O ato de ontem reuniu 250 mil - sem contar as inúmeras manifestações no exterior. Ao que parece, a sede por reformas estruturais no Brasil alcançou o status de meme. A velha classe política que se cuide!
     Fundamental agora é que os protestos não descambem para a violência, como infelizmente ocorreu no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em São Paulo, ontem à noite, na porta do Palácio dos Bandeirantes, houve um início de tumulto. Foi bonito ver os próprios manifestantes contendo os mais exaltados, ver a juventude, e não a polícia, acalmando os ânimos. Ver o movimento e o governo iniciando um diálogo. É preciso responder à pergunta fundamental: ok, chegamos até aqui. E agora?
    Tudo depende do que virá a seguir. Os próximos dias - talvez semanas, quem sabe meses - darão o real sentido do belo ato de ontem. Se o Terceiro e o Quarto Ato se tornaram as premissas do Quinto, este talvez se revele a premissa de algo ainda mais grandioso. Os próximos atos determinarão se a juventude que parou o Brasil poderá dizer, daqui a 20 anos, "eu fiz história", ou se terá de se limitar a um melancólico "eu quase fiz história".


quinta-feira, 13 de junho de 2013

O sono da razão


Goya: O sono da razão produz monstros


    Não vou discutir a óbvia legitimidade do Movimento Passe Livre nem o direito das pessoas de, numa sociedade plural, protestarem e se manifestarem contra o que quer que entendam que precisa ser mudado. Como quase todo mundo, já li e ouvi versões as mais diversas sobre os confrontos entre manifestantes e a polícia, sobre quem deu início à onda de violência, sobre o que "está por trás" dos confrontos (as teorias conspiratórias pululam). Mas creio que alguns aspectos desse momento de crise merecem uma ponderação mais racional - racionalidade, obviamente, é o que está faltando na situação.
     Apenas para raciocinarmos juntos:
     1) Embora o Movimento Passe Livre tenha organizadores, a adesão de pessoas que, sem integrar propriamente a ala organizada do movimento, a ele adere, torna difícil o controle da situação pelo próprio movimento. O que deveria fazer o MPL após constatar que os protestos dos últimos dias resultaram em atos de extrema violência? Encerrar as manifestações? Tentar conter os ânimos mais acirrados? Ou deixar tudo como está porque um movimento organizado não pode ser responsabilizado pela loucura e truculência de uns poucos?
     2) O velho (e pelo visto, adorado) maniqueísmo: todo manifestante, por estar ao lado do MPL, está certo, é um herói do povo, luta pelos direitos da população (esta ingrata que não reconhece o sacrifício de seus "heróis" e ainda os critica). Por outro lado, todo policial fardado é um psicopata violento e sedento de sangue, enviado ou por um prefeito facínora ou por um governador truculento. Nenhum desses policiais, é claro, usa transporte público. Ora, nem são os manifestantes heróis santificados pelo só fato de integrarem o MPL (ou a ele aderirem), nem são os policiais os vilões apriorísticos da história. Pelo que pude ler (não compareci a nenhum ato), houve abusos dos dois lados.
     3) Tentar justificar a violência descabida de alguns manifestantes com o argumento de que é o poder público quem comete uma "violência" contra a população ao aumentar a tarifa, como cheguei a ler em alguns textos (e como, sutilmente, os organizadores do MPL defendem em artigo de hoje na Folha de São Paulo), é insanidade. Talvez o quebra-quebra arranhe a imagem da prefeitura, mas a maior vítima dessa violência é a própria população, não o poder público.
     4) Quem critica a "truculência" de governantes que se recusam a negociar "com a faca no pescoço" e que apoiam a ação da polícia parece não se dar conta de que a violência como "argumento de negociação" mata a própria ideia de negociação. Quem usa a violência como argumento não negocia, chantageia. E a presença da polícia é fundamental em manifestações desse tipo, assim como a repressão a atos de vandalismo. É para isso que a polícia serve, afinal (não estou, obviamente, me referindo aos abusos).
     Esses são apenas quatro de inúmeros questionamentos que a situação atual suscita. Essas questões não têm respostas simples nem se solucionam na base de "certo" e "errado". Mas certamente esse nó não será desatado ao sabor das paixões desenfreadas.
     Há vândalos no movimento, sim. Mais do que isso, há, como em todo agrupamento humano, indivíduos que se valem do anonimato que o grupo fornece para extravasar suas neuroses e psicoses. Apenas os entusiastas de uma revolução que nunca virá são incapazes de enxergar que depredações de bens públicos (bens que não são do Estado ou da prefeitura, e sim do próprio povo que essas pessoas alegam defender) atrapalham, e não ajudam, o MPL.
     Entre 1797 e 1799, o pintor espanhol Francisco De Goya concebeu uma série de 80 gravuras a que chamou Los Caprichos. O Capricho nº 43 se chama El sueño de la razón produce monstruos.
     O sono da razão produz monstros. Quando a racionalidade sai de cena, resta apenas o que possuímos de mais animalesco e selvagem. É pouco provável que esse caminho leve a alguma solução válida.
     A criminalidade já chegou a patamares inaceitáveis de violência. A escalada de violência atingiu um nível de guerra civil. Além da absurda brutalidade dos bandidos, teremos de suportar também manifestações como a de terça-feira, em que diversas pessoas (entre policiais e manifestantes) saíram feridas, em que bens públicos (nossos bens) foram depredados, em que um policial quase foi linchado por uma turba ensandecida?
     O MPL já organiza outras passeatas e não dá mostras de que pretende recuar. Segundo a Folha, a polícia acionará a Tropa de Choque para o ato previsto para hoje.
     Então, tanto para quem comparece a tais atos como para quem pretende analisá-los a uma distância segura, mais razão e menos emoção (e menos ideologia, também), por favor. A sociedade como um todo agradece.
     Com a razão adormecida, os monstros ganham o mundo. Não me espantarei se, em breve, alguma passeata contra a violência também terminar em quebra-quebra, depredações, mortos e feridos.

terça-feira, 4 de junho de 2013

A classe média, que malvada!


Marilena Chauí: chilique contra a classe média

    Nas últimas semanas, a internet foi bombardeada por críticas ferozes (e defesas pueris) à classe média brasileira, capitaneadas pelo chilique da professora Marilena Chauí no lançamento do livro 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma, ocorrido em 13 de maio em São Paulo.
     O chilique, que pode ser visto aqui, deita por terra qualquer pretensão de levar a sério os argumentos da professora. Depois de definir "classe média" por um critério algo confuso, mas de natureza claramente  marxista ("o que define uma classe no modo de produção capitalista é a maneira pela qual ela se insere na relação entre os meios sociais privados de produção da força produtiva"), e de afirmar que o acesso aos bens de consumo não transforma a classe trabalhadora em classe média, Marilena Chauí - convenhamos, de forma muito honesta - explica: "E por que eu defendo esse ponto de vista? Não é só por razões teóricas e políticas. É PORQUE EU ODEIO A CLASSE MÉDIA! A classe média é um atraso de vida! A classe média é a estupidez! É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista! É uma coisa fora do comum! Então, eu me recuso a admitir que os trabalhadores brasileiros, porque galgaram direitos, conquistaram direitos, esses direitos foram conquistados com 20 anos de luta, fora os 500 anteriores de luta e desespero, e dizer que essas lutas e essas conquistas fizeram a gente virar classe média? De jeito nenhum! De jeito nenhum! A classe média é uma abominação política, porque ela e fascista; ela é uma abominação ética, porque ela é violenta; e ela é uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante!"
     O ataque histérico da professora foi saudado com compreensíveis gargalhadas e aplausos que só se explicam porque, como se sabe, Marilena Chauí tem um séquito que aplaude qualquer bobagem que ela disser. Curiosamente, não parece ter ocorrido a ninguém da plateia que ao berrar histrionicamente que odeia a classe média, a professora já deixou clara a ausência de uma objetividade mínima para que, na qualidade de "filósofa" (as aspas se justificam, pois a considero muito mais uma professora do que uma filósofa stricto sensu), ela fosse capaz de analisar o fenômeno da tal "classe média".
     Segundo o site oficial do Governo Federal, "o conceito de Classe Média foi definido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República em conjunto com o Ministério da Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Social, IBGE, IPEA, FGV, IPC/Pnud, IE/UFRJ, Insper, USP, MCM Consultores e Instituto Datapopular com base na ascensão e queda de renda dos brasileiros". Esse conceito, como se vê, não foi ditado unilateralmente por um órgão, um governo ou uma pessoa, mas construído com base em parâmetros e dados trazidos por setores distintos da sociedade.
     O Governo Federal - do qual Marilena Chauí discorda - dividiu a sociedade brasileira em três classes: classe alta, classe média (com renda familiar per capita entre R$ 291 e R$ 1.019) e classe baixa. Ainda segundo o governo, 104 milhões de pessoas compõem a classe média. São, segundo a professora, todos trabalhadores subitamente endinheirados (se é que se pode chamar de "endinheirada" uma família cuja renda per capita seja de R$ 291), ou todos reacionários, conservadores, ignorantes, petulantes, arrogantes, terroristas, abominações políticas, éticas e cognitivas?
     O pensamento de que a classe média é uma consciência coletiva intrinsecamente má foi replicado nas redes sociais, em blogs, em artigos et alii. Até mesmo o jurista Márcio Sotelo Felippe adotou a premissa, ao afirmar, em seu artigo Fascismo no Brasil de hoje, que "a inculta e selvagem classe média brasileira tem horror à diferença. Não gosta de negro, não suporta homossexual, não quer pobres por perto a não ser para limpar suas privadas. Quando é de direita - quase sempre - tem ódio da esquerda. Não é apenas contra. Não é que discorda. Odeia. A classe média brasileira é a favor da pena de morte, da redução da maioridade penal, da execução sumária de transgressores, repete frases como 'bandido bom é bandido morto' e seu ideal de política é tal qual o 'volkisch' da Alemanha nazista, mas isso, claro, quando o acusado é pobre, negro, puta, gay, etc".
     Nem vou me dar ao trabalho de refutar os autointitulados expoentes da classe média que se rebelaram contra o chilique de Marilena Chauí, porque os argumentos usados, na maioria dos textos que li ("a classe média sustenta esse país", "a classe média gera empregos" etc.) são tão rasos que nem vale a pena iniciar qualquer debate nesse sentido. Também não creio que Marilena Chauí deva ser levada muito a sério (e nem me parece que ela seja, fora do seu círculo de fãs). Não sei se procede a crítica, feita nos anos 80 pelo diplomata José Guilherme Merquior, de que Marilena Chauí plagiou Claude Lefort (segundo li, ela não negou, limitando-se a invocar contra o diplomata o, a meu ver sempre inútil, argumento ad hominem). Também não sei se é verdade que ela plagiou Julián Marías - o capítulo 3 da Unidade 3 de Convite à Filosofia, de MC, é de fato praticamente idêntico ao ponto 24 do capítulo II do Introdución a la Filosofia, de JM, e MC, ao menos na edição que li, não faz qualquer menção a JM, embora a obra deste date de 1947 (não sei quando Convite à Filosofia foi lançado, não achei edições anteriores a 1994, mas como MC nasceu em 1941, creio que o livro de Julián Marías seja anterior). Mas não conheço filosofia o suficiente para acusar MC de plágio nesse caso, porque ambos podem ter bebido da mesma fonte. Ou não.
     Em suma, não considero Marilena Chauí uma grande pensadora, e me parece que seus admiradores apreciam mais sua verve político-ideológica (e seu talento inato para a stand-up comedy) do que suas ideias filosóficas. Então, se ela quiser berrar para seu fã-clube que o que ela entende por classe média é tudo aquilo que já transcrevi, arrancando aplausos e gargalhadas, não creio que isso deva ser levado muito a sério. O próprio Lula, que subiu ao palco depois da professora, parece não levá-la a sério, já que afirmou (suponho que jocosamente): "Depois de anos que lutei para chegar à classe média, vem essa mulher e esculhamba com a classe média..."
     O problema surge quando essa concepção de "classe média malvada" começa a ser encontrada em textos mais inteligentes e que, além disso, não deixam claro a que classe média se referem.
     Considero um equívoco atribuir a uma classe social - seja qual for o parâmetro empregado para defini-la - tais ou quais características, ainda mais nos termos extremados como os empregados nos trechos que destaquei acima. Primeiro, porque reacionário, conservador, ignorante, petulante e arrogante (deixemos o terrorista de lado) são características de indivíduos e, mesmo que um grupo seja formado por muitas pessoas com essas características, não me parece correto uniformizar todos e cada um dos membros desse grupo sob tais parâmetros. Segundo, porque se parte do muito ingênuo pressuposto de que em outro(s) grupo(s) da sociedade (no caso de MC, a "classe trabalhadora") essas características não estariam presentes. Ou não haverá, parafraseando Márcio Sotelo Felippe, pobres ou membros da "classe trabalhadora" a favor da pena de morte, da redução da maioridade penal, da execução sumária de transgressores, e que repitam frases como 'bandido bom é bandido morto'? Ou a "classe trabalhadora" não é também fascista, violenta e ignorante?
     A piada de Lula contém uma verdade implícita: à exceção de quem (como Marilena Chauí) adota uma concepção de classes fundada primordialmente na ideia da exploração de uma classe por outra, a ascensão social, a escalada do que o governo chama de "classe baixa" para a "classe média" é uma conquista, e antes disso, uma meta. Não há nada mais petulante e arrogante (para usar os adjetivos empregados pela professora) do que um "intelectual" que arvora para si a "sabedoria" de dizer o que o povo (seja a "classe trabalhadora", seja a "classe baixa") quer, independentemente do que esse mesmo povo pense e diga a respeito. Como brincou Joãosinho Trinta: "Quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta de luxo."
     Caracterizar toda uma classe - seja econômica (critério do Governo), seja social (critério de MC) - atribuindo-lhe características típicas de vilões de histórias em quadrinhos (do que decorre que outras classes seriam os heróis, ou pior, a mocinha da história) - não é o tipo de análise que costuma levar a boas conclusões (basta lembrar que Marx e Engels defendiam a inevitabilidade da extinção da burguesia e a "ditadura do proletariado", duas hipóteses sobre as quais a História sapateou). A realidade social é multifacetada demais para se adequar a maniqueísmos rasteiros.
     A classe média não é, enquanto classe, vilã da história, assim como a classe baixa - ou a "classe trabalhadora" - não é o herói, nem a mocinha. Os defeitos individuais são encontrados em todas as classes. Abordagens simplistas como a de Marilena Chauí certamente não são úteis para levar uma sociedade complexa e plural (como a brasileira) à superação de suas profundas desigualdades. Mas se ela própria afirma que seu ódio pela classe média - e não há nada mais irracional do que o ódio - é a razão pela qual defende seu ponto de vista, a incoerência que se segue a partir de tal premissa não deveria surpreender ninguém.