terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Bentos, Malafaias & outras criaturas


Bento XVI e Silas Malafaia. Pedofilia, maquinações políticas,
exploração da fé alheia e intolerância. São essas as pessoas
mais capazes para guiar espiritualmente quem quer que seja? 

     Há algo de profundamente deturpado na vida espiritual da pós-modernidade, ou melhor, nos autoproclamados representantes do divino na Terra. A recente renúncia de Bento XVI, mais do que colocar em evidência a nada recente crise da Igreja Católica, expôs as fissuras mais profundas de uma mentalidade que talvez não caiba mais no mundo atual.
     O novo ex-papa reinseriu o latim nas missas, um anacronismo superado desde 1969. Uma missa em latim é o símbolo máximo da falta de comunicação entre o suposto representante de Deus (o padre) e seu rebanho - basicamente, uma conversa entre o padre e Deus (em que só o padre fala) assistida por um público que não conhece a língua em que a conversa ocorre. Confesso que, à exceção das óbvias razões históricas, nunca consegui entender como uma ideia tão descabida sobreviveu por tantos séculos.
     Felizmente Bento XVI não reinseriu a outra característica típica da chamada missa tridentina - a posição do padre, de costas para o público (como se a igreja fosse um navio guiado pelo padre). Afinal, a Igreja tem dado as costas a seus fiéis há muito tempo. Desnecessário reforçar simbolicamente essa postura.
     O ex-papa caiu em razão de uma série de escândalos, envolvendo disputas internas de poder e a já conhecidíssima tolerância da Igreja em relação a padres pedófilos.
     Aceitar que uma das instituições mais ricas do planeta pregue a pobreza (dos fiéis) como virtude já não é fácil. Mas não há justificativa para a tolerância com padres que abusam sexualmente de crianças. E ainda assim, a Igreja Católica - a mesma que queimava pessoas em fogueiras só por serem canhotas - prefere transferir os padres de paróquia em paróquia, sempre que surge alguma acusação de pedofilia. Ou seja, escrever com a mão esquerda resulta em morte. Abusar de crianças, em transferência e conivência.
     A renúncia de Bento XVI, ao contrário do que afirma parte da mídia conservadora, não é um ato de grandeza. É um ato de covardia. A debilidade física não é motivo para a renúncia - primeiro, porque ser velhíssimo é quase um requisito para ser papa, e segundo, porque se a própria Igreja exige de seus fiéis uma vida abnegada e de sacrifícios, não tem sentido que seu representante máximo fuja da raia alegando cansaço físico. O fato é que o conservador Bento não conseguiu lidar com as inconsistências de sua própria história, escancaradas pela mídia no escândalo já conhecido como Vatileaks (quando presidiu a Congregação para a Doutrina da Fé - o nome moderno da Santa Inquisição - , de 1981 a 2005, foi escancaradamente tolerante com escândalos envolvendo padres pedófilos). Sua renúncia nada tem de nobre, mas serve para deixar claro o quanto a Igreja Católica está distante da sociedade cujas almas deseja salvar.
     Enquanto Bento XVI rebola (só metaforicamente) para preservar a credibilidade da Igreja Católica perante o mundo, no Brasil o pastor Silas Malafaia destila o menos cristão dos venenos - a intolerância.
     Não bastasse a desastrosa (e já muitíssimo comentada) entrevista dada a Marília Gabriela, recebi recentemente este simpático vídeo, no qual o pastor afirma que blogueiros evangélicos que criticam pastores são "filhos do diabo" (bom, não sou evangélico, mas ele pediu pra "botar no blog", então aí está). Isso, vindo de um sujeito milionário (segundo a revista Forbes, o terceiro pastor mais rico do Brasil, com uma fortuna pessoal de 150 milhões de dólares) que desafia desempregados a lhe dar um aluguel (ou, se a pessoa morar de favor e estiver desempregada, a pegar 30% de qualquer ajuda que receber) para que o Senhor abra as portas para a pessoa ter a casa própria. Para o milionário pastor que "ama os homossexuais como ama os assassinos", criticar essa conduta - que reputo nada menos do que criminosa - é coisa de "filho do diabo". É esse o tipo de postura que deve ter quem se pretende líder espiritual de uma comunidade?
     Enfim, entre pedófilos, picaretas e exploradores da fé alheia - todos irmanados na intolerância e no conservadorismo - a habilidade para a condução da espiritualidade dos outros parece ir mal, muito mal.
     Criticar esses autoproclamados guias espirituais não implica qualquer crítica à crença de quem quer que seja, ou a qualquer divindade. Curiosamente, parece que o eixo central da fé cristã - o amor ao próximo - nunca esteve tão distante das maquinações, das jogadas políticas, do acobertamento de crimes e da exploração financeira da esperança alheia, que constituem as atividades principais de boa parte dos líderes religiosos da atualidade.
     Em 1879, Dostoiévski escreveu o imprescindível Os irmãos Karamazov. Num pioneiro exercício de metalinguagem, a personagem Ivan escreve o poema em prosa O Grande Inquisidor, no qual Jesus reencarna em Sevilha e é preso pelo Cardeal da Santa Igreja, que critica e condena seu retorno. Embora o texto tenha mais de 130 anos, sua leitura nos faz pensar o que Jesus acharia dos Bentos, Malafaias, Valdomiros e criaturas que tais, se voltasse à Terra hoje e visse os usos que têm sido dados à sua mensagem.
     Como acontece com muitos clássicos, a frase "se Deus não existe, tudo é permitido", atribuída a Dostoiévski, não consta do livro, embora essa ideia esteja presente na obra. Se os atuais líderes religiosos acham (e agem como se achassem) que tudo lhes é permitido, o que isso nos diz a respeito de sua fé?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Yoani Sánchez e o radicalismo bocó


Yoani Sanchéz: "traidora", "vendida",
"agente dos EUA", mercenázzzzzz...


     A blogueira cubana Yoani Sánchez, que escreve o conhecidíssimo (fora de Cuba) Generación Y, desembarcou ontem no aeroporto de Recife. O Brasil é a primeira parada da blogueira, que passará por uma série de outros países para discutir as questões sobre as quais escreve em seu blog, cujo tema principal é a crítica à realidade cubana.
     A chegada da blogueira, tanto no aeroporto de Recife quanto, mais tarde, no de Salvador, foi marcada por protestos de manifestantes favoráveis ao regime cubano. Yoani foi chamada de "mercenária", "traidora" e "personalidade falsificada", a serviço da CIA e dos EUA, dentre outras coisas.  Em Recife, manifestantes chegaram a puxar o cabelo da blogueira. Ela não apenas não se incomodou com os protestos, como deu uma resposta interessante: "Foi um banho de democracia e pluralidade, estou muito feliz e queria que em meu país pudéssemos expressar opiniões e propostas diferentes com esta liberdade."
     Ontem, em Feira de Santana, seria exibido na Casa do Saber (um planetário cedido pela prefeitura) o documentário "Conexão Cuba Honduras", do cineasta baiano Dado Galvão. Yoani Sánchez, que está no documentário, estava presente. Mas manifestantes invadiram o salão e impediram a exibição. A blogueira teve de ser recolhida a uma sala fechada, de onde só conseguiu sair após mais de vinte tentativas frustradas. Os militantes já avisaram que estão se organizando e que protestos ocorrerão nas demais aparições de Yoani Sánchez em outras cidades.
     É a primeira viagem internacional que a blogueira faz desde 2008, quando, após voltar a Cuba, foi proibida de deixar o país.
    Em política, há poucas situações em que o radicalismo se justifica. Devemos ser absolutamente radicais contra ditaduras, tiranias e governos que violam direitos humanos e fundamentais de seus cidadãos. Devemos ser radicais contra a corrupção, e na exigência de que os poderes públicos se submetam às leis por eles criadas. Não devemos, em hipótese alguma, ser radicais contra pessoas que têm posições políticas diferentes das nossas.
     Yoani Sánchez é severamente criticada por suas posições políticas, e não há nada de errado nisso. Todo argumento é sujeito a críticas - se bem ou mal fundamentadas, é outra questão. Mas o radicalismo que leva um grupo de manifestantes a impedir a exibição de um filme e a agredir fisicamente alguém de cujas ideias discordam é o reflexo mais evidente de uma intolerância inaceitável em regimes democráticos (pergunto-me como essas pessoas agiriam se estivessem no poder).
     Critica-se o fato de Yoani Sánchez receber um um salário da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa) e ter um padrão de vida superior ao dos demais cubanos - como se essa situação lhe impedisse de discutir o que quer que ela queira discutir em seu blog. Chamam-na de traidora - mas traidora de quê ou de quem? Afirma-se que ela serve a interesses dos EUA. Talvez sirva, talvez não. Se servir, é direito dela fazê-lo. É direito dela, inclusive, adorar os EUA e considerá-los o Éden na Terra - e assim se manifestar, se achar que deve. Acusam-na de promover desinformação. Mas não sei se seus críticos conhecem a realidade cubana tão bem - ou ao menos tão bem quanto ela, que mora lá - para fazer essa afirmação com tamanha certeza. E não nos esqueçamos de que "faturar o que é bom e esconder o que é ruim" (nas palavras imortalizadas por Rubens Ricupero em 1994, no famoso "escândalo da parabólica") é a estratégia de grande parte dos militantes políticos, tanto de esquerda quanto de direita. Sem contar que a desinformação é uma arma política usada por todos os regimes socialistas (Cuba, inclusive). Pelos capitalistas também, é claro, mas nenhum capitalista está acusando Yoani Sánchez de promover desinformação.
     Em suma, sejam bem ou mal formuladas (a maioria me parece bem tola, mas há vários questionamentos válidos e consistentes), as críticas à blogueira fazem parte do universo das ideias, e é assim que as coisas devem ser. Mas um radicalismo bocó, com agressões físicas e tentativas de impedir a exibição de filmes, não tem nenhuma utilidade, política ou ideológica. É só mais munição para o pensamento conservador que liga, automaticamente, o pensamento de esquerda ao autoritarismo. Ou seja, é burrice.
     E convenhamos, Yoani Sánchez não merece tudo isso. Embora seja um produto de marketing perfeito para a pós-modernidade (a moça de ar frágil que se ergue intrépida contra o governo tirano e malvado), embora seja uma celebridade mundial, seus textos não têm essa relevância toda. Alguns são interessantes, e só. Não passa muito disso. O radicalismo bocó, nesse sentido, lhe dá um ibope que seu blog, por si só, não sustentaria. Mais um ponto para ela.
     De resto, se você não gosta de Yoani Sánchez, ignore-a. Deixe-a escrever seus textos, fazer seus discursos e suas viagens (aliás, o simples fato - solenemente ignorado por seus detratores - de ela ter sido proibida pelo governo cubano de deixar o país por quatro anos já justifica algumas de suas críticas). Critique suas ideias (mas não precisa puxar seus cabelos), aponte suas incoerências e mostre, de forma racional e democrática, no que ela está errada.
     Também seria interessante que os críticos mais ferrenhos da blogueira passassem alguns anos em Cuba, sem acesso à internet, sem poder criticar o governo, sem poder deixar o país e sem encontrar livros que o governo considera inadequados à população, dentre inúmeras outras restrições (sempre achei curioso o fato de que celebridades que defendem o regime cubano, como Chico Buarque, Niemeyer e Saramago, nunca se dispuseram a abandonar seus próprios países para viver a utopia socialista na própria pele). Alguém que conhecesse essa realidade de perto poderia, com mais propriedade, defender as vantagens do regime - caso não mudasse de ideia.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A voz da fome


Carolina de Jesus: a personificação
de um mundo de anônimos.

     Ontem, 13.02.2013, a morte de Carolina Maria de Jesus completou 36 anos. Infelizmente, hoje em dia pouca gente se lembra desse nome. Carolina de Jesus, no entanto, escreveu uma das obras mais importantes da literatura brasileira - Quarto de despejo - diário de uma favelada, publicado originalmente em 1960.
     Quarto de despejo não figura em praticamente nenhuma lista das principais obras da literatura brasileira, mas - repito - é um dos livros mais importantes já escritos no Brasil. Porque, ao contrário dos autores da segunda fase do Modernismo brasileiro, que se notabilizaram por uma literatura marcada pela denúncia social (dos quais Graciliano Ramos, com o fundamental Vidas Secas, é o mais emblemático), Carolina de Jesus foi, simultaneamente, autora e personagem de sua obra.
     Nascida em 1914 em Sacramento (MG), negra e pobre, teve na infância uma professora (dona Lanita Salvina) que a aconselhou a ler e a escrever tudo o que pudesse. Embora só tenha chegado ao segundo ano do primário, Carolina apaixonou-se cedo pelos livros. 
     Ao chegar em São Paulo, em 1947, Carolina foi morar na favela do Canindé, na beira do rio Tietê, perto de onde fica o Estádio da Portuguesa. Trabalhou por algum tempo como doméstica, mas logo se tornou catadora de papel. Fechada, séria e circunspecta, criou sozinha três filhos, e nas horas vagas escrevia um diário, no qual registrava seu cotidiano e a realidade que a cercava.
     Em 1958, o jornalista Audálio Dantas visitou a favela para escrever uma reportagem sobre a comunidade que se expandia. Conheceu Carolina e esta lhe mostrou seu diário, que então já ocupava 20 cadernos. Dantas leu todos os cadernos e percebeu que a história que ele buscava já estava escrita. Trechos do diário foram publicados no jornal Folha da Noite em 1958 e na revista O Cruzeiro em 1959. No ano seguinte, o livro Quarto de despejo, editado pelo próprio Audálio Dantas, foi lançado.
     O livro foi um sucesso imediato. Numa época em que as edições eram lançadas em dois ou três mil exemplares, Quarto de despejo teve tiragem inicial de 10 mil exemplares, esgotados na primeira semana. As edições que se sucederam alcançaram 100 mil exemplares, e o livro foi traduzido em 13 idiomas.
     Carolina tornou-se celebridade, conseguiu sair da favela e deixar a miséria - mas não a pobreza - para trás. Mas suas obras posteriores - Casa de alvenaria (1961), Provérbios (1963), Pedaços da fome (1963) e Diários de Bitita (1982, póstumo) - não tiveram a mesma recepção de público e crítica. De "excitante curiosidade" (como a chamou o escritor Luís Martins), Carolina foi sendo deixada de lado. Morreu pobre e esquecida, em 1977, num sítio em que vivia na periferia de São Paulo.
     Embora seja um diário narrado em primeira pessoa, o personagem principal do livro não é Carolina - é a fome. A fome está, literalmente, em todas as páginas da obra, e cada página é um soco no (alimentado) estômago do leitor.
     Carolina trava uma luta diária, incessante e quase sempre perdida contra a fome. Sua principal preocupação é alimentar a si mesma e a seus filhos, o que nem sempre consegue. O fato de alguém nessa situação arrumar tempo para ler e escrever é absolutamente impressionante. A edição preserva os muitos erros ortográficos, o que só confere mais força e realismo ao texto. 
     Uma leitura puramente racional é impossível, tamanho o impacto de certos (e muitos) trechos: "Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?'. Esta palavra 'tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais"; após tentar convencer um jovem a não comer uma carne estragada que lixeiros haviam jogado no local, escreve: "Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz fertil igual ao meu. (...) No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. (...) Ninguém procurou saber seu nome. Marginal não tem nome."; "Fui no Frigorífico, ganhei uns ossos. Já serve. Faço uma sopa. Já que a barriga não fica vazia, tentei viver com ar. Comecei desmaiar. Então resolvi trabalhar porque não quero desistir da vida."; "Era 6 horas quando apareceu um carro. Era um senhor que havia casado e veio nos dar os sanduíches que sobrou. Eu ganhei alguns. Depois os favelados invadiram o carro. Os moços foram embora e disse que iam jogar os sanduiches no lixo que gente de favela são estúpidos e quadrupedes que estão precisando de ferraduras."
     A miséria está toda lá, em sua crua realidade: nos bêbados, nas brigas, nos assaltos, no racismo (sim, ele também se faz presente na obra), nos políticos oportunistas (que aparecem na favela quando há eleições) nas crianças precocemente amadurecidas ("Já que o meu filho já sabe como é o mundo, a linguagem infantil entre nós acabou-se"). Não há um único momento de alívio para o leitor. A brutalidade do que fizemos (e fazemos) a nós mesmos é exposta de forma avassaladora. Carolina não está só; ela é uma voz, mas é a voz de todos os anônimos que a rodeiam, irmanados na miséria.
     A verdadeira literatura é a que não nos permite passar incólumes. A leitura de Quarto de despejo é assim, transformadora. Não se termina o livro do mesmo modo como se começou. Ainda mais diante da realidade atual, e da (inevitável) conclusão de que conseguimos piorar o terrível quadro exposto no livro (em 1960, as drogas, o tráfico e o crime organizado ainda não tinham dominado as favelas, que eram muito menores do que hoje em dia).
     Em 1958, Carolina escreveu: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora". Palavras proféticas. O Brasil teve um presidente que já passou fome, e que se mostrou obcecado com a erradicação da miséria (a fome se mostrou, de fato, uma professora eficiente). Mas ainda falta muito a avançar. "A favela é a nova senzala", cantava Lobão nos anos 80, antes de se tornar reacionário. Ainda somos prisioneiros da nossa miséria e, mais de meio século após Carolina escrever "Isto não pode ser real num paiz fertil igual ao meu", boa parte da população brasileira continua a subsistir com o suficiente apenas para se manter em pé.
     Por isso Quarto de despejo continua a ser tão relevante. Por isso Carolina não pode ser esquecida. Porque, apesar de todo o avanço da última década, a fome ainda é uma realidade nacional - para vergonha de todos nós.   
     
     

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O que eles querem?




       Pra começo de conversa, quem são eles?
     Eles são os negros, os pobres, os homossexuais, as mulheres (sim, elas também são eles), os excluídos de tudo, os perdidos no torpor da droga e do álcool, aqueles a quem a sociedade - ou uma parcela da sociedade (bem menor do que se pretende) - chama, paradoxalmente, de "minorias" (embora, em sua totalidade, sejam a indiscutível maioria). Eles, para quem a regra não vale como vale para os demais.
     E o que eles querem?
     Não muito, na verdade quase nada. 
     Eles, os negros, querem ser vistos, julgados e tratados de acordo com seus atos, seus méritos e suas escolhas, e não de acordo com o tom da sua pele. Eles querem que a polícia os pare se cometerem crimes, e não porque "a ordem é parar principalmente negros e pardos". Eles querem um futuro em que haja o mesmo número de negros e brancos nos restaurantes, nas empresas, nas universidades, nos clubes.
     Eles, os pobres, querem que os governantes cumpram o que está na Constituição e nas leis. Querem que lhes sejam dadas oportunidades para que seus filhos estudem, para que possam morar decentemente, para que tenham um emprego e um salário que lhes permita viver com um mínimo de dignidade. Querem um hospital que preste. Querem ter acesso, e o direito ao acesso, a um mundo que lhes parece fechado por dentro.
     Eles, os homossexuais, querem que o fato de amarem pessoas do mesmo sexo não influa na sua vida profissional, não seja motivo para que eles sejam espancados nas ruas, não lhes impeça de ter os direitos que as outras pessoas têm, de casar, de ter filhos, de formar suas famílias nas formas que bem quiserem. Eles querem que seu amor não seja considerado uma doença, algo ruim ou "coisa do diabo". Eles querem acreditar em seus deuses do seu jeito, como os demais fazem.
    Eles, que são elas - as mulheres - querem que seus namorados, maridos e companheiros não as espanquem e que sejam punidos se o fizerem. Elas querem usar a roupa com que se sentirem melhor, sem que os demais as julguem por isso. Elas querem que seu trabalho seja tão valorizado quanto o de seus colegas homens, e que os salários sejam os mesmos se fizerem o mesmo trabalho. Elas querem ser livres para fazer suas próprias escolhas, sem pedir ou justificar nada a ninguém.
    Eles, os excluídos de tudo, querem ser tratados como seres humanos. Se conseguirem sobreviver em meio à miséria, querem que o governo lhes dê a assistência mínima a que têm direito. Se errarem, se cometerem crimes, querem ser julgados de acordo com as leis existentes, e não segundo regras não escritas inventadas por policiais, delegados, promotores e juízes, regras que distinguem as pessoas de acordo com o que elas têm e de onde elas vêm. Se presos e condenados, eles querem cumprir suas penas em celas feitas para seres humanos, não em canis ou masmorras medievais. Eles querem, em suma, que o poder público reconheça que, sob todo o manto de miséria que os encobre, ainda existem seres humanos.
     Eles, os perdidos no torpor da droga e do álcool, também querem que seus governantes enxerguem as pessoas escondidas no interior daqueles corpos cambaleantes. Eles querem ser tratados como gente, não como lixo a ser varrido para longe dos olhos dos demais, jogados num canto distante e abandonados à própria sorte. Quando ainda são capazes de querer, querem achar uma paz que veem nos outros, mas que não encontram em si mesmos. Quando chegam ao ponto de não conseguir querer mais nada, querem que quem queira por eles queira, no mínimo, preservar sua humanidade.
     O que todos eles querem? Um pouco de justiça, um pouco de igualdade. Nem precisa ser muito. Num mundo em que os 2% mais ricos concentram mais de 50% de toda a riqueza do planeta, eles não querem nem mesmo mudar o sistema. Eles só querem ter uma chance, mínima que seja, dentro desse sistema injusto.
     O que eles querem é que essa odiosa divisão do mundo entre "eles" e "nós" desapareça.
     Numa manhã de 1963, Samuel Weiner e Paulo Francis estavam parados num cruzamento, dentro de um carro, quando viram um grupo de jovens pobres jogando futebol com uma bola de meia. Wainer comentou: "Eles querem tão pouco e lhes negamos".
     Não existem "eles" de um lado e "nós" de outro. Mas a sociedade optou por criar essa linha imaginária, que tanto mal tem feito a todos.
     Passado meio século, eles continuam querendo tão pouco, e continuamos e lhes negar. Daqui a cinquenta anos continuará tudo igual?

     

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Sociedade e autoridade - parte 1



O anúncio do experimento de Milgram. US$ 4,00
por uma hora do seu tempo. US$ 4,00 para
descobrir algo perturbador sobre si mesmo.

     Do que somos capazes, diante de uma autoridade que aceitamos?
     Há exatos cinquenta anos, em 1963, o psicólogo Stanley Milgram, da universidade de Yale, publicou no Journal of Abnormal and Social Psycology o artigo Behavioral Study of Obedience, resultado de um experimento iniciado dois anos antes, que ficou conhecido como Experiência de Milgram. Em 1974, Milgram lançou seu estudo mais aprofundado sobre a experiência, o livro Obedience to Authority: An Experimental View. O objetivo de Milgram era tentar entender como foi possível que as atrocidades praticadas pelos nazistas envolvessem um número tão grande de pessoas (segundo Milgram, "essas políticas desumanas podem ter se originado na mente de um único indivíduo, mas só poderiam ser executadas em escala massiva se um grande número de pessoas obedecessem a ordens"). Não por acaso, a série de experimentos teve início em julho de 1961, três meses após o início do famoso julgamento de Adolf Eichmann (que, por sua vez, também gerou uma obra indispensável, Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt).
     Os voluntários eram informados de que participariam de um teste de memória, envolvendo dois participantes e um professor. Um dos voluntários, escolhido aleatoriamente, era preso a uma cadeira, ligada a um gerador de choques com 30 níveis graduais de voltagem, de 15 ("choque leve") a 450 volts ("perigo: choque severo"). O professor explicava aos voluntários que o objetivo do experimento era estudar os efeitos da punição na memória. O outro voluntário ficava na sala ao lado, sem enxergar o primeiro, e era o responsável por fazer as perguntas do teste de memória. A cada resposta errada, o voluntário precisava subir um nível de voltagem e aplicar o choque.
     Mas não se tratava de um teste de memória. O professor e o primeiro participante eram atores. O que Milgram queria estudar era a propensão à obediência a uma ordem vinda de uma autoridade constituída.
     À medida que o primeiro voluntário errava as perguntas, o segundo, orientado pelo "professor", aumentava gradualmente a voltagem dos choques. A "vítima", a partir de certo momento, começava a gritar e a pedir que o teste parasse. Quando a voltagem alcançava 300 volts, a "vítima" batia contra a parede atrás da qual estava o voluntário. O "professor", gentilmente, mas com firmeza, orientava o segundo voluntário (na verdade, o único participante real do experimento) a continuar. O teste previa quatro respostas padronizadas que o "professor" usava, sempre na mesma ordem, a partir do momento em que os participantes começavam a questionar se deveriam continuar a aplicar os choques:
     1) - Por favor, continue.
     2) - O experimento requer que você continue.
     3) - É absolutamente essencial que você continue.
     4) - Você não tem outra escolha, precisa continuar.
     Se após o uso da quarta resposta o voluntário continuasse relutante em prosseguir, o experimento era encerrado.  
     Quando se chegava aos 315 volts, a "vítima" batia novamente contra a parede e a partir de então ficava em silêncio. O "professor" informava ao participante que o silêncio devia ser interpretado como resposta errada, e a voltagem devia ser aumentada. O participante, sem ver a "vítima", sem saber se ela estava desacordada ou morta, continuava a aumentar a voltagem.
     Participaram do experimento 40 homens, entre 20 e 50 anos. Destes, 26 elevaram a voltagem até o grau máximo, embora muitos demonstrassem desconforto ao fazê-lo.
     Portanto, 65% dos voluntários se mostraram dispostos a aplicar choques em um completo desconhecido, mesmo após imaginá-lo desacordado ou morto, desde que uma autoridade lhes dissesse que aquilo deveria ser feito.
     O livro de 1974 apresenta variantes do experimento, algumas ainda mais desconcertantes. Milgram constatou, por exemplo, que se houvesse um segundo "voluntário" (também ator) decidido a aplicar os choques até o final, os participantes reais do experimento chegavam a 450 volts em 92% dos casos.
     A primeira versão da Experiência de Milgram foi repetida em 2009, e pode ser vista no documentário The truth about violence, dirigido pelo jornalista britânico Michael Portillo. Não sei se o documentário foi lançado no Brasil, mas encontrei um trecho bastante perturbador - e legendado. Dessa vez, a experiência foi feita com 12 voluntários, dos quais 9 aplicaram os choques até atingir a voltagem máxima.
     Na experiência original, 65% dos voluntários chegaram até o limite máximo de voltagem. Na experiência de 2009, foram 9 entre 12, portanto, 75%. Teremos nos tornado ainda mais violentos do que éramos em 1961?
     Gostamos de pensar que somos essencialmente bons. Mas estamos dispostos a torturar um desconhecido até a morte, se a isso formos ordenados por uma autoridade (a quem possamos transferir nossa responsabilidade por eventuais danos à vítima) que nos afirme que devemos fazê-lo e nos der uma razão que consideremos válida. Como o vídeo mostra, não é preciso que a autoridade nos coaja por meio da violência. Basta pedir com educação e firmeza.
     As doze pessoas envolvidas na experiência eram absolutamente comuns - um agente financeiro, uma estudante de biologia, uma personal coach etc. Nove foram até o final, apesar de a "vítima" gritar, pedir para ser libertada e finalmente ficar em silêncio, desacordada ou morta.
    O que cada uma dessas pessoas deve ter pensado a respeito de si mesma, após descobrir do que é capaz em determinadas circunstâncias? O que cada um de nós pensaria?
     Como você reagiria ao experimento? Como eu reagiria? Eu teria ido até o final? Em teoria, tenho certeza que não, mas o fato é que jamais vou saber.
     E talvez seja melhor assim.



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Esquizofrenia carcerária


Cela de delegacia interditada em Miranda do Norte (MA).
No alto, urubus atraídos pelo mau cheiro.

     Há algo de profundamente esquizofrênico na relação entre a sociedade brasileira e sua população carcerária.
     O primeiro mês de 2013 foi marcado por uma série de denúncias de maus-tratos e violações de direitos de presos.
     Logo nos primeiros dias do ano, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo recebeu uma denúncia de  tortura contra 52 presos do Complexo Prisional de Xuri. Segundo a denúncia, a tortura teria ocorrido em 02 de janeiro. Após os presos reclamarem de falta de água, um grupo de agentes penitenciários os colocou em um pátio e os obrigou a ficar sentados, nus, por duas horas no chão de cimento quente. Todos tiveram queimaduras nas nádegas. Depois disso as visitas foram suspensas e os presos foram isolados dos demais, sem direito a atendimento médico.
     Dias depois, no Maranhão, uma juíza determinou a interdição de quatro celas de um delegacia de Miranda do Norte, comparando-as a canis. Segundo a juíza, as celas são escuras, têm lixo e odor de fezes e urina, atraindo urubus, não havia colchão nem água potável. Nas palavras da juíza, "não existe outra definição a não ser canil. Seres humanos são tratados como cães ali. A cela é tão escura que nem possibilita ver quem está dentro. Há muita sujeira. (...) A água é muito escura. Não é possível que um ser humano beba aquilo. É um local totalmente escuro, insalubre e sem condições de manter seres humanos."
     Qualquer um sabe que esses dois fatos não são isolados, e que casos similares ocorrem Brasil afora. Mas isso parece incomodar pouca gente. Na verdade, uma parcela significativa da sociedade não só aprova, mas se delicia quando fatos assim são divulgados - o que é facilmente perceptível na leitura dos comentários feitos pelos internautas nas notícias acima.
     Curiosamente, quem defende esse tratamento desumano não se dá conta da profunda contradição que essa posição encerra. Endossar a brutalização e a tortura do criminoso é adotar a postura e os valores que, supostamente, o próprio criminoso tem e que justificariam esse tratamento.
     A resposta a esse tipo de crítica é sempre a mesma - o preso cometeu um crime medonho, não tratou seu semelhante como um ser humano, logo, deve receber o mesmo tratamento.
     Há uma falha brutal, óbvia e, paradoxalmente, pouco percebida nesse raciocínio. Ela surge quando se pergunta: por que e para que tratar de forma desumana o preso, brutalizá-lo, bestializá-lo?
     A resposta ao "por quê" é relativamente simples - ele cometeu um crime grave, e por isso deve "sofrer". Para muitos, o cumprimento da pena não é "sofrimento" suficiente, então a complementação surge nas torturas, nas condições carcerárias medievais etc. Em suma, é a Lei de Talião, o "olho por olho, dente por dente". Só que a Lei de Talião foi superada há séculos, e não combina com o mundo civilizado. O "olho por olho, dente por dente" não devolve à vítima do crime o bem ou o parente perdido, não gera benefício algum para a vítima ou a sociedade. É, pura e simplesmente, vingança, nada mais.
     A resposta ao "para quê" é muito mais complexa. Qual o objetivo, a finalidade de desumanizar e torturar alguém que está preso por um crime grave? Talvez a resposta mais comum - e rasteira - seja: "para que ele aprenda e não faça de novo". A pena seria tão dura, tão cruel, que inibiria o criminoso de praticar novos crimes. Mas a realidade já mostrou que isso não acontece. Brutalizar um ser humano para que ele se ressocialize é uma ideia tão ilógica quanto ineficaz.
     Em teoria, uma pena criminal tem três funções: 1) retribuição (o mal da pena como consequência do mal do crime); 2) prevenção, tanto geral (como exemplo para a sociedade) quanto individual (como desestímulo à prática de outros crimes pelo apenado); e 3) ressocialização do preso. Nada disso funciona na prática. Males não se equivalem (o consolo de alguém que perdeu um parente no assalto ao ver o criminoso preso, ou executado, não equivale à presença da pessoa que se foi), e penas cruéis nunca foram capazes de inibir a criminalidade (que só aumenta). Os efeitos práticos da prevenção geral são ínfimos, já que a violência e a criminalidade crescem a cada dia (e só podem ser efetivamente combatidas com políticas públicas preventivas, e não repressivas), e os da prevenção individual são inexistentes - as cadeias são escolas do crime, e o ex-presidiário geralmente não é aceito pelo mercado de trabalho ao sair, sendo praticamente empurrado, via estigmatização, de volta para o mundo do crime. Ressocialização, mesmo em países com sistemas carcerários eficientes, é difícil. No caso das masmorras brasileiras, é impossível - alguém consegue imaginar que um detento que passe longo tempo em celas como a da foto acima saia do sistema melhor do que entrou?
     Surpreendentemente, quem defende a crueldade contra o criminoso como método punitivo não percebe que se coloca na mesma posição do criminoso. Se eu desnecessariamente inflijo o mal (a tortura, a brutalização) a alguém que não conheço, sem que haja propósito ou finalidade válidos, o que me torna diferente do bandido que eu pretendo punir? E se for assim, por que ele deve ser punido e eu não?
     A prisão é um mal necessário, pois ainda não conseguimos criar uma forma menos pior de lidar com crimes violentos e indivíduos perigosos. Mas achar que prender alguém em condições mínimas de dignidade é "dar hotel a bandido" é uma estupidez, e nunca ouvi essa frase de alguém que já tenha sido privado de sua liberdade. Cecília Meireles escreveu: "liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta e que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda". Quem acha que prisões dignas são "hotéis de bandidos" deveria tentar explicar por que os presos vivem tentando fugir, já que têm moradia e alimentação pagas pelo Estado. Todo ser humano, bom ou mau, tem vocação natural para a liberdade física. Subtrair a alguém o exercício dessa vocação não é pouca coisa.
     Luiz Flávio Gomes, em prefácio à obra Falência da pena de prisão, de Cezar Roberto Bitencourt, afirma que "ao lado da miséria, a prisão é talvez a maior lacra da humanidade nesta virada de século e de milênio", e que "tendo em vista que ainda dela não podemos dispor, pelo menos devemos lutar pela sua progressiva humanização, (...) porque a prisão avilta, desmoraliza, denigre e embrutece o apenado".
     Privar algumas pessoas de sua liberdade é um mal necessário. Brutalizá-las apenas para saciar nossos piores apetites, não.