terça-feira, 15 de janeiro de 2013

"Minhas mucaminhas!"


Mucamas: "ai, que saudade!"


     "Mucama", para quem não lembra das aulas de história da escola, era a escrava de estimação, geralmente designada para realizar trabalhos domésticos ou servir de acompanhante das sinhás, babá das crianças e, em alguns casos, brinquedo sexual de seus senhores.
     Figura comum no Brasil colonial, a mucama é, provavelmente, a herança mais resistente da escravidão. Embora a abolição tenha ocorrido em 1888, a relação entre os trabalhadores domésticos e seus patrões guardou muito daquele antigo modelo. 
     A prova inconteste de que o Brasil ainda aprecia uma boa mucama está no absurdo tratamento dado pela lei e pela Constituição aos trabalhadores domésticos. A Constituição de 1988, louvada como marco da redemocratização brasileira e apelidada de "Constituição Cidadã" por Ulysses Guimarães, ao tratar dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais no artigo 7º, estabelece 34 direitos, mas garante aos trabalhadores domésticos, no seu parágrafo único, apenas nove. Proteção contra despedida arbitrária, seguro-desemprego e FGTS são apenas alguns dos muitos direitos negados aos trabalhadores domésticos na Constituição. Embora a natureza de alguns direitos trabalhistas exclua, por suas próprias características, essa categoria (como a participação nos lucros), não há uma justificativa válida para a negação de diversos outros. Mas não é difícil compreender os aspectos culturais que levaram a essas escolhas. Afinal, os parlamentares que debateram e promulgaram a Constituição de 1988 também tinham suas mucamas.
     A mucama "light" esteve presente nos lares brasileiros desde a abolição. No Brasil, empregada doméstica não é luxo, todo mundo tem. E, até recentemente, era uma categoria mal remunerada e explorada à exaustão. Embora em menor número do que no passado, ainda hoje há muitas mucamas modernas que dormem no serviço, "morando", seis dias por semana, nos armários improvisados que as construtoras, em tom de piada de mau gosto, chamam de "dependências de empregada".
     Nos últimos anos, contudo, esse panorama vem se transformando.
     A ascensão da chamada "classe c", a facilidade de acesso ao crédito e a abertura de vagas no mercado de trabalho têm alterado o perfil do trabalhador doméstico no Brasil. É cada vez mais difícil encontrar uma empregada que aceite dormir no trabalho, ou que se submeta às humilhações a que a categoria se acostumou por décadas. Trabalhador doméstico, hoje - pasmem! - , quer ser tratado como gente.
     Até cerca de uma década atrás, não era incomum encontrar, na classe média, casas com duas empregadas. Hoje em dia, isso é uma raridade. O trabalhador doméstico atual tem casa própria, automóvel, seus filhos frequentam faculdades (ainda não as de primeira linha, em regra, mas já é uma mudança significativa) e seu salário, embora ainda baixo, é muito maior do que no passado. E agora ele compra seu próprio celular e seus eletrodomésticos - bens que, antes, eram herdados do patrão quando ficavam velhos.
     Diante desse novo quadro social, a parcela da sociedade desacostumada a lavar pratos e roupas se vê perdida. Frente a uma pia abarrotada e a um cesto cheio de roupa suja, a ex-sinhá se desespera, lembrando, saudosa, os bons tempos, os anos 80 e 90, e se lamuria: "Minhas mucaminhas!"
     Pois é, elas estão rareando. Ainda existem, infelizmente (certos maus hábitos custam a morrer), mas seu número diminui a cada dia.
    Daí o drama das patroas, que não conseguem arrumar uma "empregada decente", porque são todas "folgadas, preguiçosas, acham que podem tudo". Como afirmou uma advogada ao Estadão na reportagem Procuram-se domésticas. Paga-se bem, de 14 de janeiro, "hoje as empregadas domésticas estão por cima da carne seca". Ainda bem.
     É bom lembrar que nossa recentemente alterada realidade escravocrata não tem similar em países desenvolvidos. Nos EUA e na Europa, empregadas domésticas são artigo de luxo. Embora nosso modelo não seja, como a jabuticaba, patrimônio exclusivamente nacional, um regime escravocrata não parece combinar com desenvolvimento econômico.
     É claro que nem todo mundo se adapta à nova realidade com tanta facilidade. Em tradicionais clubes paulistanos, como o Pinheiros, o Paineiras e o Paulistano, babás têm de usar, obrigatoriamente, roupa branca. Em uma reportagem da Folha, de fevereiro de 2011, uma babá disse "ser proibida de ir ao restaurante acompanhada apenas das crianças e conta que um sócio já pediu que ela se levantasse de um banco perto da piscina". Em outubro de 2012, uma babá foi barrada na entrada do Clube Caiçaras, no Rio de Janeiro, porque não estava vestida de branco. Em 1º de novembro de 2012, foi publicado no blog Viajando com Filhos o texto Viagem levando Babás, que ensina às mães endinheiradas como "adestrar" babás em viagens internacionais - um verdadeiro manual de como deixar bem claro para a babá que ela está do outro lado de um muro invisível, mas bem real.
     Ou seja: ter um salário melhor e acesso a bens de consumo, vá lá, admite-se (fazer o quê?). Agora, querer "se misturar", parecer "um de nós", derrubar esse muro que deu tanto trabalho para construir, aí já é demais! Menos, mucaminhas!
     Mas, para desespero dos mucamistas mais resistentes, também em novembro de 2012 uma comissão especial do Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 478/2010, que, se definitivamente aprovada, dará aos trabalhadores domésticos direitos como FGTS, carga horária semanal limitada a 44 horas, hora extra e adicional noturno. Pânico no Clube Paulistano! Enquanto os Sindicatos das Empregadas Domésticas comemoram a vitória, Sindicatos de Empregadoras Domésticas (sim, isso existe no Brasil) reprovam a mudança constitucional. Em entrevista à UOL, Andréa Macedo, presidente do Sindicato das Empregadoras Domésticas de Pernambuco, diz que a alteração vai gerar um alto índice de demissões. É comovente a preocupação com o futuro incerto e sombrio dos trabalhadores domésticos, mas é provável que a PEC seja aprovada.
     Enfim, para quem achava justo e certo pagar menos de 100 dólares por mês para ter uma mucama à disposição por 24 horas, 6 dias por semana, os tempos não estão fáceis. Mas ainda há um longo caminho a ser trilhado para que os patrões dos trabalhadores domésticos não vejam a sociedade em termos de "nós" e "eles". Nós somos nós. Usemos ou não roupa branca.
     


3 comentários:

  1. As pessoas contratam empregadas domésticas não em decorrência da ideologia escravocrata, mas pela opção existente - aqui é mão de obra relativamente barata por questões meramente econômicas - fato que vêm se alterando substancialmente nos últimos tempos, como você bem aponta. A desenvolvimento econômico do Brasil tem elevado naturalmente os salários das empregadas domésticas, como decorrência do processo já consolidado no primeiro momento.

    O desvio de tratamento de alguns, como essa do blog que orienta o tratamento da babá como bicho de estimação, não pode ser tomado como regra.

    Na Europa e nos EUA não existe essa opção - e desenvolvimento econômico tem o efeito de aproximar os salários dos entre os trabalhadores mais e menos qualificados - ou seja, é caro demais ter empregada doméstica. Não existe opção para o americano de classe média ter a empregada doméstica, já que o custo será proibitivo.

    Pessoalmente, eu acho o FGTS uma excrescência por si só, típica de país paternalista - eu não sei o que fazer com o dinheiro do meu salário, então dou 8% dele para o Governo administrar. No macro, retira-se 8% da renda de toda a força produtiva do país, que poderia estar poupando ou consumindo, girando a economia como um todo. Isso sem falar no custo adicional de administração que esse e tantos outros descontos geram para o RH das empresas. Aliás, é essa a verdadeira razão da redação original da CF não impor essa obrigação aos contratantes de empregados domésticos, invariavelmente pessoas físicas, sem a estrutura de um departamento de RH.

    Assim, não por me enquadrar na categoria de escravocrata, mas sim pelas razões acima, sou totalmente contra essa PEC.

    Sou, sim, favorável à PEC que proclame a extinção do FGTS para todas as categorias - os trabalhadores devem receber a integralidade de seus salários, sem a tunga governamental.

    Ah, e a multa do 40% contra a despedida imotivada? Ué, precisa desconto mensal de FGTS pra isso? Ela poderia continuar existindo, calculada sobre a mesma base - é mera questão aritmética, pois!

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    1. Como já diziam toda a unanimidade é burra, claro que existem patrões que contratam empregadas pela facilidade e baixo custo, mas existe sim a herança escravocrata e ela é evidente seja no imaginário popular reforçado pelas novelas globais, onde as empregadas na sua maioria são negras, estão quase sempre uniformizadas, resta mais evidente ainda quando nas mesmas novelas é alimentado uma espécie de fetiche do poder onde as domésticas por um golpe de sorte ou outra circunstância passam de empregadas a patroas, mas o preocupante é na vida vivida onde empregadas e babás são marcadas com uniforme branco nas reuniões sociais e são utilizadas não só para a finalidade, mas para ostentação, falamos de empregadas mas no mesmo diapasão como exemplo os seguranças de condomínios de alto padrão que são expostos como símbolo de poder do lado de fora, o que técnicamente não teria efeito algum, mas lá estão eles com seu terno e gravata escuros seja o calor infernal que esteja fazendo, sendo quase atropelados pelos seus "patrões" que seguem no ar condicionado de seus carrões de luxo. No meu pensamento a facilidade em contratar uma empregada faz parte de uma sintoma onde uma sociedade que ainda não se livrou de seus instintos escravocratas, da mesma forma que são exigidos os títulos de Doutores a advogados, delegados, dentistas e etc, mas este já é assunto para uma outra conversa.

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  2. Pois é... mas em sociedades que atingiram um grau maior de maturidade econômica (Europa e EUA), esses escravocratas (que também existem lá) discursam para o deserto, já que não têm dinheiro para contratar seus "escravos"...

    O fidalguismo é uma praga mundial e os estudos sociológicos só servem para demonstrar a sua existência - jamais apontam soluções para eliminar o problema.

    A diferença é que nos países ricos, o poder dessas pessoas é menor, em regra...

    Quanto maior a desigualdade econômica de um país, maior será a visibilidade dessa praga - vejam os países do Oriente Médio....

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