quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Defender a lei não é defender bandidos

A polícia que não se submete à lei. Criticar os desvios da
instituição, mais que um direito, é um dever da socidade.

               Neste momento de verdadeira guerra civil pelo qual passamos, em que policiais são assassinados em suas horas de folga e as chacinas nas periferias se proliferam, em que a sociedade se sente acuada em meio a uma batalha entre a polícia e o crime organizado – esquecendo-se de que tanto os policiais quanto os bandidos fazem parte dessa mesma sociedade que, portanto, não está do lado de fora dessa guerra – , neste momento em que o ciclo de violência urbana parece se intensificar, caminhando rumo a uma espécie de moto-perpétuo gerador de infindáveis cadáveres perfurados a bala, os defensores do pensamento conservador, cuja melhor síntese é o argumento de que “bandido bom é bandido morto”, buscam justificar a escalada de violência com a premissa de que a polícia só reage a agressões prévias, como se o aparato policial não tivesse também sua parcela de responsabilidade por essa escalada, como se a violência em resposta à violência levasse à paz social, e não, como se vê diariamente nos jornais, a uma violência ainda maior.
            A turma do “bandido bom é bandido morto”, como todo grupo conservador, usa a simplificação como blindagem a qualquer crítica que lhe seja dirigida. Assim, quem não concorda com as chacinas nas periferias, com as execuções extrajudiciais travestidas de “resistências seguidas de mortes”, com o extermínio puro e simples dos marginais, de preferência à noite, em alguma viela escura, sem direito a processo ou a defesa, é gente que “defende bandido”.
Quem comete crime é bandido. Mesmo que esteja fardado.
Ainda que haja – e há – grupos de extermínio, ainda que haja – e há – policiais que, revoltados com a “impunidade” que impera no Brasil (a despeito do número cada vez maior de prisões e da lotação dos estabelecimentos carcerários) e com a legislação que é "muito benevolente" com os criminosos, decidem tomar a lei nas próprias mãos e agir como promotores, juízes e carrascos, ainda que em inúmeras situações a ação desses maus policiais seja uma violação explícita à lei, quem critica essa linha de raciocínio – em outras palavras, quem sustenta a singela ideia de que o policial, como agente público de segurança, deve cumprir a lei – é criticado por ser “defensor de bandido”.
Resumindo, defender o cumprimento da lei significa defender a bandidagem – um raciocínio reducionista e rasteiro, mas cada vez mais difundido nos meios conservadores.
Que fique bem claro: não estou me referindo àquelas situações de confronto aberto entre policiais e bandidos, nas quais os policiais agem, muitas vezes com letalidade, para proteger suas próprias vidas e a sociedade. Certo grau de violência é inerente à ação policial (já que a polícia é a força física do Estado) e muitas vezes é inevitável. Refiro-me às cada vez mais frequentes chacinas e execuções de pessoas que, no momento da morte, não ofereciam qualquer perigo. É o bandido já dominado, o indivíduo “fichado” que está no bar, o trombadinha que incomoda o bairro e é fuzilado quando está dormindo ao relento. É, em suma, a pessoa que deve ser detida, processada e, se for o caso, condenada pelo Poder Judiciário, e não executada na calada da noite como um cachorro louco.
Essa mentalidade de milícia muitas vezes encontra eco e apoio não só em órgãos públicos, que, por trás do discurso midiático de que “quem errou será investigado e punido”, endossa silenciosamente a reação violenta, como também em parcela considerável da sociedade, que, acuada pela criminalidade, assustada pela violência, muitas vezes sem sentido, de que é vítima, e frustrada com o lugar-comum de que “o Brasil é o país da impunidade” (lugar-comum que, por sinal, não explica a superlotação dos presídios), apóia essa política do extermínio. Páginas do Facebook como Admiradores Rota e Eu nasci pra ser Polícia (dentre outras) trazem inúmeros comentários, por parte de seus leitores, que aplaudem – e muitas vezes pedem sem o menor constrangimento – a matança pura e simples.
E quem quer que defenda a ideia de que o policial deve cumprir a lei, prendendo os marginais ao invés de executá-los, é rotulado como “defensor dos bandidos”. São inúmeros os comentários do tipo “leva o bandido pra sua casa”, “criticam a polícia, mas ligam para 190 quando precisam” ou “não gosta da polícia? Chama o Batman”.
Mas defender a lei e defender o crime são duas coisas bem diferentes. E a polícia não está, nem pode jamais se considerar, imune a críticas. A crítica à polícia visa antes de tudo aprimorá-la, torná-la melhor, pela óbvia razão de que precisamos dela. E porque precisamos da polícia, devemos analisar suas posturas, e principalmente seus desvios, de forma tão crítica quanto severa - o que implica o reconhecimento, e não a negação, da sua importância.
Quando um policial atira contra um indivíduo, é o Estado quem está puxando o gatilho. Quando um policial agride desnecessariamente um suspeito, é o poder público quem dá o tapa. Quando o governo coloca uma arma de fogo nas mãos de um homem, essas mãos são as mãos do governo enquanto ele está fardado. E a sociedade tem, mais do que o direito, o dever de fiscalizar a ação desses agentes públicos.
Blindar-se contra críticas com um argumento tão idiota como o de que criticar a polícia é defender o crime não colabora em nada para o aperfeiçoamento dos policiais. Fazer isso é evitar um debate necessário, é isolar a polícia da sociedade, é compactuar com erros estruturais crassos que precisam ser corrigidos. É, em última análise, posicionar-se contra os bons policiais, aqueles que cumprem a lei, que desempenham diariamente sua função (muitas vezes difícil e perigosa, e quase sempre mal remunerada) sem cruzar aquela linha que separa o policial do bandido.
Quem consegue enxergar isso não isenta a polícia da crítica necessária e muitas vezes dura, mesmo que a defenda com unhas e dentes. Quem acha que criticar a polícia é o mesmo que defender bandido deveria estudar mais o assunto, ou procurar outra coisa para fazer: jogar videogame ou montar quebra-cabeças de 5.000 peças, talvez. E deixar esse debate para quem pretende levá-lo a sério.



5 comentários:

  1. René seu post me lembrou nossos anos de PAJ, em que com muita freqüência eu ouvia: "esse tipo de criminoso não deveria ter defesa", "preso em flagrante, tem que ir pra cadeia direto", com muita freqüência para determinados crimes que causam clamor social como estupro e sequestro ou até genericamente para qualquer tipo de crime. Diante de tais comentários eu sempre respondia: " e se o crime fosse cometido pelo seu irmão, pai, marido, ou qualquer outro membro de sua família, o discurso seria o mesmo?!". Com esse tipo de comentário, entendo que a sociedade, inconscientemente até, é adepta aos regimes de exceção, tão criticados por essa mesma sociedade ao manifestar-se, em termos mais genéricos, contra a ditadura. Trazendo um pouco de juridiquês para o debate: o devido processo legal é direito fundamental da pessoa humana, exceções a ele devem advir do próprio texto constitucional, portanto, a diferença no tratamento a ser dado ao criminoso ocorrerá somente na aplicação da pena, compatível ao crime praticado e às suas circunstâncias pessoais, e não no processo a que ele se submete, seja, "bandido" ou "policial".
    Mais uma vez parabéns pelo blog, estou adorando e já tinha certeza do sucesso.
    Bj

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  2. Obrigado, Júlia. A PAJ, principalmente a criminal, foi uma lição de vida, acho que deveria ser estágio obrigatório para todo estudante de direito. A sociedade sedenta por sangue, que incentiva a matança, só perpetua o ciclo de violência. Os Contes Lopes, Telhadas e Bolsonaros da vida têm o ibope que têm porque boa parte da sociedade endossa a barbárie, sem se dar conta de que isso piora, e muito, a situação. É preciso mostrar que a solução para a violência não está em mais violência, e sim na solidez das instituições e na eficácia do sistema - dois aspectos altamente deficitários, que precisam ser muito melhorados. Sem que se faça isso, o banho de sangue - de policiais, de bandidos, de cidadãos - só vai aumentar.

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  3. Ótimo texto, reflete bem o meu pensamento, creio que a polícia deveria estar aberta não só aos orgãos de corregedoria, mas a sociedade civil, não uma abertura formal em que as mídias as expõe, já que estas notícias muitas vezes são distorcidas, mas aberta ao próprio meio acadêmico, as ongs e entidades de dreitos humanos, a repulsa que sentimos de muitos políciais em relação as referias entidades e recíproca, em outras palavras o deprezo em que vemos os comentários de políciais em relação a entidades de direitos humanos também volta quando o defensor dos direitos humanos diz que o policial é manipulado e boneco do estado, deveria existir formas de integração dos dois lados, só assim penso que o círculo vicioso seria dissolvido.

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  4. Adão, creio que o seminário de hoje nos trouxe informações relevantes acerca da resistência da instituição à democratização e à transparência. Mas sou otimista e creio que caminhamos, ainda que de forma muito lenta, rumo à democratização da polícia. Devagar, enfrentando resistências e corporativismos, chegaremos, em algum momento, a uma polícia mais integrada à sociedade e, por conseguinte, melhor.

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