segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Tribunais paralelos

Se gritar "pega ladrão"
Não sobrevive um, meu irmão...


            Maciel Santana da Silva, de 21 anos, abraçou uma menina de 12 anos. E morreu por isso.
            O irmão da menina, ao saber do fato, procurou integrantes do PCC em Várzea Paulista, pedindo providências. Na versão dos fatos narrada aos criminosos, Maciel teria estuprado a menina.
            Treze bandidos montaram o que a imprensa costuma chamar de “tribunal do crime”, com a presença de Maciel, da menina e de sua família. O “julgamento” ocorreu em 11 de setembro. A menina negou a ocorrência do estupro, disse aos criminosos que o irmão havia exagerado e que Maciel só lhe dera um abraço. Posteriormente, a mãe da menina disse à imprensa que Maciel agarrara sua filha. Seja qual for a verdade, o fato é que o “tribunal” absolveu Maciel.
            Mas antes que a “sessão de julgamento” fosse encerrada, policiais da Rota chegaram ao local e mataram oito dos bandidos, além do próprio Maciel. Os demais foram presos.
            Na primeira versão divulgada pela polícia, os criminosos teriam assassinado Maciel. Posteriormente, a própria polícia admitiu que foi a Rota quem o matou. O governador Geraldo Alckmin afirmou à imprensa que “quem não reagiu está vivo”. De acordo com o boletim de ocorrência, Maciel estava dentro de um Pointer e portava uma pistola 9mm.
            Em que cenário é possível imaginar que alguém levado à força para um matagal por treze criminosos do PCC para ser julgado teria em seu poder uma pistola 9mm? Em que cenário é possível conceber que Maciel, na situação em que se encontrava, teria reagido contra os policiais?
            Havia 40 policiais da Rota na ação. De acordo com a imprensa, 61 tiros foram disparados pela polícia. Não foram encontradas marcas de tiro em nenhuma das viaturas envolvidas na operação.
            Absolvido pelos bandidos, Maciel não escapou ao julgamento da Rota. Ele não tinha antecedentes criminais e, segundo seu pai, passava por tratamento psiquiátrico. Em nota enviada à Folha de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública informou que ele tinha dois irmãos com antecedentes criminais, inclusive por tráfico de drogas.
            Parte da população, aquela que sempre aplaude as chacinas patrocinadas pela polícia, elogiou a ação da Rota, com os argumentos de sempre. No dia seguinte às mortes, na página do Facebook “Eu nasci para ser polícia”, foi postada a pergunta: “A AÇÃO DA ROTA FOI PADRÃO? QUEM CONCORDA DA UM CURTIR AE...!” (sic). No momento em que publico esse post, 3.826 pessoas haviam “dado um curtir”. Os comentários feitos a respeito são indescritíveis.
            A atuação da polícia em São Paulo ainda renderá muitos posts por aqui. Sem apelar para o maniqueísmo rasteiro de que todo policial é assassino ou herói, nem para o radicalismo imbecil de que todo bandido tem mais é que morrer mesmo, constato que, embora a imprensa e a sociedade gostem de tratar o crime organizado como um poder paralelo que age à margem do Estado, existem outros, aos quais não se costuma dar a devida atenção.
Em que diferem os “tribunais paralelos” do PCC da conduta dos policiais que se arvoram na condição de promotores, juízes e executores de quem julgam ser “bandidos”? Em que diferem dos comerciantes que contratam policiais para exterminar os ladrões de galinha que atrapalham seu comércio?
É incompreensível a lógica segundo a qual o mandante ou executor do assassinato de um “bandido” é considerado um “cidadão de bem” ou um “herói da sociedade”. Se não houve um processo judicial, se tudo foi feito à margem da lei, o mandante e o executor não são tão bandidos quanto o executado, quando não mais? Afinal, bandido é quem comete crime. E quem pratica um homicídio não autorizado por lei está fazendo o quê?
Quando José Afonso da Silva, um dos juristas mais brilhantes do Brasil, afirmou que o governo Alckmin tolera a violência policial no combate ao crime, ao contrário do que fazia o governador Mário Covas (de quem foi secretário de segurança pública), o atual secretário, Antônio Ferreira Pinto, afirmou que José Afonso foi um secretário medíocre. Talvez, para a atual secretaria, a mediocridade e a eficiência se meçam pela quantidade de cadáveres que a polícia produz.
A ala conservadora paulista, que apóia o assassinato de bandidos – desde que não sejam heróis fardados ou cidadãos de bem – talvez tivesse dificuldade em justificar o homicídio de Maciel Santana da Silva. Por outro lado, para quem pensa assim, talvez seja suficiente ter dois irmãos com antecedentes criminais. Por essa lógica perversa, ter irmão “fichado” é mais grave do que matar ao arrepio da lei.
É claro que para quem não conhece a diferença entre combate à criminalidade e vingança social essas considerações não fazem o menor sentido. Sem essa distinção, não importa buscar formas de evitar o crime, e sim de punir o crime após a sua ocorrência. Mas perguntem a qualquer um o que é melhor: ser vítima de um crime e ver o criminoso punido ou não ser vítima de crime algum?
O ciclo de violência, em cujas roldanas estão presos policiais, bandidos e a própria sociedade, se autoalimenta e não precisa do Estado para agravar a situação. Ao contrário, uma das funções do poder público é justamente quebrar esse mecanismo perverso. Caso não o faça, o número de tribunais paralelos tende a aumentar – até chegarmos ao ponto em que tribunais de verdade não servirão para nada.

5 comentários:

  1. A questão da justiça, mesmo que sendo feita por bandidos, me dá a impressão que atrai o público em geral. Não sei se por conta de nossos tempos, atuais, qualquer demonstração de ação que traga um julgamento (neste caso foi ao pé da letra) ao que se considera uma "mazela da sociedade" (sem julgar se é ou não, muito menos quem acha isso), acaba trazendo aprovação. A questão já está hoje totalmente distorcida, incentivando aplausos a qualquer reação que "bote ordem", sendo isso feito ou não por quem não tem nenhuma condição ou moral, e o pior, por mais cruel que seja. Em seu texto, existe a chance de aprovação ao julgamento promovido pelo PCC. Por que estamos assim? Nossa justiça se fosse menos tolerante, mais rápida e punitiva, mudaria esta percepção?

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  2. Regis, o fato de a população buscar a solução de seus problemas junto aos bandidos e não ao poder público já demonstra o grau de distorção a que chegamos e o quanto o Estado está desacreditado. Não há a possibilidade de que eu aprove o "julgamento" do PCC, seja ele qual for, porque a própria existência desse "julgamento" já é por si só uma aberração. Se o poder público desse uma resposta adequada aos anseios sociais, não tenho dúvida de que a população se sentiria menos desamparada e não procuraria bandidos para resolver conflitos desse tipo.

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    1. Olá René. Só esclarecendo um ponto: não disse que você aprovaria o julgamento. Disse que em seu texto (e aí fui traído pelo MEU texto, que não foi completo, me desculpe!) existem exemplos de chance de aprovação ao julgamento, que é a passagem em que você comenta do Facebook. É exatamente isso, a população aprova, justamente porque o poder público não faz isso, e os exemplos que temos são cada vez piores em termos de justiça vindo dos tribunais afora.
      Parabéns pelo blog. Já tinha dito que era muito bom, e reitero.

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  3. Deixe eu um dar um pitaco aqui. Há de se distinguir URGENTEMENTE o que significa "anseios sociais", haja vista que a sociedade, tal qual esta, não anseia por posturas homogenias por parte do Estado. A desigualdade social é tanta e tão cruel, que eu sou capaz de afirmar que não há saída: Ou muda o Estado (o que não vai acontecer), ou a sociedade (ou parte dela, notadamente os excluídos de tudo) cria um Estado que atenda os anseios dela. A parte da população que pode pagar, já faz isto. Compra educação para seus filhos; compra segurança para sua família; Compra transporte adequado e confortável; Compra saúde; Compra o acesso ao Judiciário, pagando bons advogados; Enfim... paga caro por uma vida mais viável para si e para seus entes queridos, criando uma espécie de Sociedade Paralela. Se estiver errada, por favor me corrijam, mas o exemplo, ao que me parece, vem dai. A grande parte da população que não tem acesso a nada e também não pode pagar, tem forte motivos para não acreditar em nada que deveria vir do Estado. Ou será que se a mãe da garota que se propagou como sendo a vítima nesse bizarro Tribunal teria tido alguma atenção das autoridades policiais, caso tivesse optado por buscar os meios legais??? Talvez sim, talvez não. Porém, nunca é demais lembrar que cachorro mordido de cobra, tem medo até de linguiça... Em tempo, não aprovo o ocorrido e tenho muito medo do rumo que as coisas estão tomando. Sinceramente.

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  4. Obrigado, Regis. Fico feliz que você esteja gostando e aguardo suas futuras contribuições. A população parece aprovar não o julgamento, mas o JUSTIÇAMENTO (essa palavra que nada tem a ver com justiça...) da "bandidagem" pela polícia. É pavoroso.
    Ester, você está certíssima. Recomendo muito a leitura do livro JUSTIÇA - PENSANDO ALTO SOBRE VIOLÊNCIA, CRIME E CASTIGO, do Luís Eduardo Soares, que mostra que a desigualdade começa desde a forma de abordagem policial, passa pelo tratamento dado pelo Judiciário e chega ao pós-cumprimento da pena. É desalentador, mas, como você bem observou, é a sociedade que tem de promover a mudança.

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